quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Amante

Sinto falta de um amor possível,
ultimamente tem sido impossível a possibilidade de amar
cabeça cheia,
coração vazio,
de todas as fontes que bebo
em nada me sacio.
Mas em algum lugar deve existir
uma alma tão revolta quanto a minha,
dando linha pra pipa do futuro.
Espero que bons ventos
tragam seu mandado
pro lado de dentro do meu muro.
(Daniel Fagundes)

sábado, 12 de dezembro de 2009

Latência

Meus poemas estão perfilados
Amotinados e confinados
Dentro de minhas incertezas
Forçam a explosão
Clarão de luzes inquietas
Uns saem imaturos
Outros chorosos
Alguns indicam mutações acentuadas
Mas como uma noturna doutrina
Visito-os em seu delírio de penumbra
Humildemente entendo-os
Alimento-os das melhores sínteses
Que possam existir
A satisfação do verso compreendido
Lava-me ao auto-exílio das sensações amenas
Palavras palavras palavras
Às vezes onde se escondem?
Às vezes tento colhê-las
O que encontro?
Larvas larvas larvas
E minhas inquietações pervagam
Em busca de novas velhas brigas
Pelo relâmpago da criação
(Edner Morelli)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Tantas Frestas

A incapacidade das minhas letras mutiladas
Deixam sem querer, expostas tantas feridas.
Um canto repleto de notas tristes despejadas.
Cuja harmonia se foi, em tantas vindas e idas.

E nos recantos dos versos, frestas denunciam.
O esforço contínuo que ainda em mim perdura
De querer novo começo, mas os gritos silenciam.
Limitando a eficácia do que considero armadura

Frestas evidentes me fazem um ser vulnerável.
Aos sutis e astutos ataques do ego inflamado
Que caça o ponto fraco, tentando faze-lo inábil.


Tentativa vã de ver o muro de arrimo dizimado
Porem se pelas frestas a luz turva meu olhar
Por elas, o norte certeiro me capacita desvendar.
(Glória Salles)

sábado, 5 de dezembro de 2009

Simples assim

Soprando afeto, vou multiplicando meus eus
Percorrendo a vida, em sonhos avarandados.
No campo da emoção faço minha cama.
Às vezes lágrimas, sob sorrisos disfarçados.

Vou brincando de ferver minhas artérias.
Equilibrando pensamentos esmiuçados
Brinco na fantasia palida do delirio
O chão adubo de sonhos, desejos eriçados

No céu rabisco todos os sentimentos.
Alimento-me do cheiro da chuva, do vento
Nas veias da ilusão passeio sem culpa
Nas utopias e nos caminhos que invento

De nada adianta esquadrinhar as causas.
Sou feita de nós e de abundantes pausas.
(Glória Salles)

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança
Todo mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz, de novo espanto,
Que não se muda já como soia.

(Luís de Camões)

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O que há em mim

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser…

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto…
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço…
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Fresta

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.
(Fernando Pessoa)

domingo, 25 de outubro de 2009

Não: Devagar

Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.
Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?
(Álvaro de Campos)

sábado, 24 de outubro de 2009

Anda! Caminha! Aonde?... Mas por onde?...

Se a um gesto dos teus a sombra esconde

O caminho de estrelas que tracei...
(Florbela Espanca)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"Tem dias..."

Tem dias em que me perco em meus enigmas.
Quando consigo contrafazer imensa lacuna
Aturdida vou rabiscando versos sem rimas
Sentimentos peregrinam em densa bruma

Para o oculto do que sinto, sou rota medida.
Sou esfinge nebulosa, sem definição precisa.
Nem as estrelas conseguem indicar a saída
Desse labirinto de interrogações concisas

As certezas pousam ao relento na madrugada
Na oponente palidez dos meus subterfúgios
Exausta de me esquivar nos atalhos da estrada
Esquadrinho atalhos nos atemporais refúgios

À procura de mim saio num nômade mergulho
Não me vejo, mas em sedenta busca, me procuro.
(Glória Salles)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Sonhos

Sonhei que era a tua amante querida,
A tua amante feliz e invejada;
Sonhei que tinha uma casita branca
À beira dum regato edificada…

Tu vinha ver-me, misteriosamente,
A horas mortas quando a terra é monge
Bater o coração quando de longe

Te ouvia os passos. E anelante
Estava nos teus braços num instante,
Fitando com amor os olhos teus!

E, vê tu, meu encanto, a doce mágoa:
Acordei com os olhos rasos d´água,
Ouvindo a tua voz num longo adeus!!!
(Florbela Espanca)

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Certo querer

Uma longa espera...
Pelo que nunca veio e talvez jamais venha.
Um querer provar outro gosto, outro bocado.
Perco-me nas voltas que traço
E meus territórios abertos
Mostram-me o horizonte longe demais
Inalcançável aos meus olhos...
É querer esse "nada" cheio de mistérios
Outras palavras, antes jamais ditas
Rios querem fluir, ir ao encontro
Do mar desconhecido, assustador
Ao mesmo tempo o medo
De ficar a deriva, num mar bravio...
É me olhar do alto de mim
Nada entender, ainda assim me permitir
É querer ser o que digo
E o que penso, sem negar, nem me esconder.
É querer o plano "B", antes até
Da estratégia montada
A ânsia por descobrir, conhecer, ouvir
É contornar minhas margens
Preencher meus espaços...

E aprender a nesses vácuos...
Não tecer fios de solidão
Confuso esse querer ir embora
De mim mesma...
(Glória Salles)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Nem o sol, nem a lua, nem eu...

Hoje eu encontrei a Lua
Antes dela me encontrar
Me lancei pelas estrelas
E brilhei no seu lugar
Derramei minha saudade
E a cidade se acendeu
Por descuido ou por maldade
Você não apareceu

Hoje eu acordei o dia
Antes dele te acordar
Fui a luz da estrela-guia
Pra poder te iluminar
Derramei minha saudade
E a cidade escureceu
Desabei na tempestade
Por um beijo seu

Nem a Lua, nem o Sol, nem Eu
Quem podia imaginar
Que o amor fosse um delirio seu
E o meu fosse acreditar

Hoje o Sol não quis o dia
Nem a noite o luar.
(Lenine)

domingo, 27 de setembro de 2009

Descansa coração

Cansei de tanto procurar
Cansei de não achar
Cansei de tanto encontrar
Cansei de me perder

Hoje eu quero somente esquecer
Quero corpo sem qualquer querer
Tenho os olhos tão cansados de te ver
Na memória, no sonho e em vão
Não sei pra onde vou
Não sei se vou ou vou ficar
Pensei não quero mais pensar
Cansei de esperar

Agora nem sei mais o que querer
E a noite não tarda pra nascer
Descansa coração
E bate em paz 
 
(Fernanda Takai)

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Sereneta

" ... Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.
Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silencio,
e a dor é de origem divina.
Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo ... "
(Cecília Meireles)

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Se cada dia cai

Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

Há de sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caida
com paciência

(Pablo Neruda)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Embalada num sonho aurifulgente
Sei apenas que sonho vagamente
Ao avistar, amor, teus olhos belos,

Em castelãs altivas, medievais,
Que choram às janelas ogivais,
Perdidas em românticos castelos!
(Florbela Espanca)

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Em suspenso

Ter a vida em suspenso
um quase nada
beira do abismo
encruzilhada...

Ter a vida em suspenso
fragilidade e tensão
os dados na mesa
sem cartas nas mãos.

Ter a vida em suspenso
suspiro congelado
desespero mascarado
pensamentos a rondar:

Sou tão pouco
um quase nada
diante da vida
de sentença anunciada...

É abrir os braços
e esperar o vento
rezar baixinho
num fio de voz.

Esperar em Deus
que se vá o tormento
E se houver algum sol
que ele brilhe por nós...

(Edilene Santos)

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Doce milagre

O dia chora. Agonizo
Com ele meu doce amor.
Nem a sombra dum sorriso,
Na Natureza diviso,
A dar-lhe vida e frescor!

A triste bruma, pesada,
Parece, detrás da serra
Fina renda, esfarrapada,
De Malines, desdobrada
Em mil voltas pela terra!

(O dia parece um réu.
Bate a chuva nas vidraças.)

As avezitas, coitadas,
‘Squeceram hoje o cantar.
As flores pendem, fanadas
Nas finas hastes, cansadas
De tanto e tanto chorar…

O dia parece um réu.
Bate a chuva nas vidraças.
É tudo um imenso véu.
Nem a terra nem o céu
Se distingue. Mas tu passas…

E o sol doirado aparece.
O dia é uma gargalhada.
A Natureza endoidece
A cantar. Tudo enternece
A minh’alma angustiada!

Rasgam-se todos os véus
As flores abrem, sorrindo.
Pois se eu vejo os olhos teus
A fitarem-se nos meus,
Não há de tudo ser lindo?!

Se eles são prodigiosos
Esses teus olhos suaves!
Basta fitá-los, mimosos,
Em dias assim chuvosos,
Para ouvir cantar as aves!

A Natureza, zangada,
Não quer os dias risonhos?…
Tu passas… e uma alvorada
Pra mim abre perfumada,
Enche-me o peito de sonhos!

(Florbela Espanca)

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Talvez um voltasse, talvez o outro fosse.

Talvez um viajasse, talvez outro fugisse.

Talvez trocassem cartas, telefonemas noturnos,

dominicais, cristais e contas por sedex

(...)

talvez ficassem curados, ao mesmo tempo ou não.

Talvez algum partisse, outro ficasse.

Talvez um perdesse peso, o outro ficasse cego.

Talvez não se vissem nunca mais, com olhos daqui pelo menos,

talvez enlouquecessem de amor e mudassem um para a cidade do outro,

ou viajassem junto para Paris

(...)

talvez um se matasse, o outro negativasse.

Seqüestrados por um OVNI, mortos por bala perdida,

quem sabe.

Talvez tudo, talvez nada...

talvez....
(Caio Fernando Abreu)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Amor proíbido

são aqueles versos guardados na garganta
a fome ante o prato vazio
a sinceridade da ilusão
o calafrio no estômago e o calor nos lábios
a loucura apaixonante
é afogar-se em cada suspiro
é saudade do que nunca existiu
é o desejo da carne
é imaginar como seria...
Amor proibido
é sorvete em banho-maria
é namorar a solidão
mergulhar em destilados
deitar em nuvens quando se vê o sorriso amado
é sentir a eternidade em cada minuto de silêncio
é ter vontade de arrancar o coração do peito à unhadas
é desejo de gritar, abraçar, chorar...
Amor proibido
é a dor gostosa de deixar doer
mas que quase mata
quando a razão nos proíbe de viver,
à dois...
(André Luiz Pereira - Universo em Translação)

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Olhar a lua


Ponho-me a olhar a lua

E fico a pensar

Se você também está olhando pra ela

Quem sabe nesse momento

Nossos olhares se miram

Para uma mesma direção

(Maria Helena)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Meu coração anda carente

Meu coração anda carente
Não pode ver um sorriso, um olhar
Que se enche todo de esperança
E logo se põe a sonhar
Sonhos que um a um
Vão se perdendo sem ao menos
Tornarem-se reais...
(Maria Helena)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Sem respostas

Avaliar porque falhou aquele instante
Fragmentar resquícios de memória
É como fugir sem endereço, meio errante
Buscar explicação, nos pedaços da historia

O sonho irrealizado, as palavras não ditas
Perderam-se nos labirintos do nosso universo
Inescrutáveis momentos, lembranças distintas
Deixadas ou perdidas nas frases de cada verso

Tentar entender o vazio esquecido em cada vão
É num corpo desprovido de alma, procurar calor
E nesta casta ambigüidade, reformular a dor

Muito menos doloroso seria não buscar razão
Ou esquecer num canto, os detalhes de nós
Sigo sem respostas, vendo o brilho da lua, a sós...
(Glória Salles)

sábado, 8 de agosto de 2009

As quadras dele (II)

Digo pra mim quando ouço
O teu lindo riso franco,
“São seus lábios espalhando,
As folhas dum lírio branco…”

Perguntei às violetas
Se não tinham coração,
Se o tinham, porque ’scondidas
Na folhagem sempre estão?!

Responderam-me a chorar,
Com voz de quem muito amou:
Sabeis que dor os desfez,
Ou que traição os gelou?

Meu coração, inundado
Pela luz do teu olhar,
Dorme quieto como um lírio,
Banhado pelo luar.

Quando o ouvido vier
Teu amor amortalhar,
Quero a minha triste vida,
Na mesma cova, enterrar.

Eu sei que me tens amor,
Bem o leio no teu olhar,
O amor quando é sentido
Não se pode disfarçar.

Os olhos são indiscretos;
Revelam tudo que sentem,
Podem mentir os teus lábios,
Os olhos, esses, não mentem.

Bendita seja a desgraça,
Bendita a fatalidade,
Bendito sejam teus olhos
Onde anda a minha saudade.

Não há amor neste mundo
Como o que eu sinto por ti,
Que me ofertou a desgraça
No momento em que te vi.

O teu grande amor por mim,
Durou, no teu coração,
O espaço duma manhã,
Como a rosa da canção.

Quando falas, dizem todos:
Tem uma voz que é um encanto
Só falando, faz perder
Todo juízo a um santo.

Enquanto eu longe de ti
Ando, perdida de zelos,
Afogam-se outros olhares
Nas ondas dos teus cabelos.

Dizem-me que te não queira
Que tens, nos olhos, traição.
Ai, ensinem-me a maneira
De dar leis ao coração!

Tanto ódio e tanto amor
Na minha alma contenho;
Mas o ódio ainda é maior
Que o doido amor que te tenho.

Odeio teu doce sorriso,
Odeio teu lindo olhar,
E ainda mais a minh’alma
Por tanto e tanto te amar!

Quando o teu olhar infindo
Pousa no meu, quase a medo,
Temo que alguém advinhe
O nosso casto segredo.

Logo minh’alma descansa;
Por saber que nunca alguém
Pode imaginar o fogo
Que o teu frio olhar contém.

Quem na vida tem amores
Não pode viver contente,
É sempre triste o olhar
Daquele que muito sente.

Adivinhar o mistério
Da tua alma quem me dera!
Tens nos olhos o outono,
Nos lábios a primavera…

Enquanto teus lábios cantam
Canções feitas de luar,
Soluça cheio de mágua
O teu misterioso olhar…

Com tanta contradição,
O que é que a tua alma sente?
És alegre como a aurora,
E triste como um poente…

Desabafa no meu peito
Essa amargura tão louca,
Que é tortura nos teus olhos
E riso na tua boca!

Os teus dente pequeninos
Na tua boca mimosa,
São pedacitos de neve
Dentro de um cálix de rosa.

O lindo azul do céu
E a amargura infinita
Casaram. Deles nasceu
A tua boca bendita!

(Florbela Espanca)

domingo, 2 de agosto de 2009

Lados opostos

A soleira da janela é arrimo ao corpo cansado
Neblina no peito, condensada dor, e letargia
A beleza estonteante do horizonte alaranjado
Era só a evidência de mais uma noite de vigília

E num tempo que tem pressa, a noite se alonga
Trazendo na quietude a sensação de abandono
Do outro lado do vidro, quem a vida prolonga
Sorri, diz que desse lado, um anjo vela seu sono

Anjo... que queria o poder de minar toda dor
Cuja fé vacilante, hoje o faz impotente e vão
Camufla num sorriso o frio alojado no coração

Porque nem todo dia, a alma é leve, e tudo é flor
Nem todo dia se consegue flutuar como pluma
Nem todo dia o sol faz dissipar a densa bruma...

(Gloria Salles)

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
(Alberto Caeiro)

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Como nuvens pelo céu

Como nuvens pelo céu
Passam os sonhos por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.
São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transtorna?
Que coisa inútil me dói?
(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Saudade

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.

(Pablo Neruda)

terça-feira, 21 de julho de 2009

sonhos...

"Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso."
(Fernando Pessoa)

sábado, 11 de julho de 2009

Maria das quimeras...

Maria das Quimeras me chamou alguém...
Pelos castelos que eu ergui
P'las flores d'oiro e azul que a sol teci
Numa tela de sonho que estalou.

Maria das Quimeras me ficou;
Com elas na minh'alma adormeci.
Mas, quando despertei, nem uma vi
Que da minh'alma, Alguém, tudo levou!

Maria das Quimeras, que fim deste
Às flores d'oiro e azul que a sol bordaste,
Aos sonhos tresloucados que fizeste?

Pelo mundo, na vida, o que é que esperas?...
Aonde estão os beijos que sonhaste,
Maria das Quimeras, sem quimeras?...
(Florbela Espanca)

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Reticências

Às vezes eu imagino
que tenho alguém
perto de mim...
Alguém que eu amo
e que me quer também;
que olha nos meus olhos,
que pega no meu rosto,
alguém que sabe o gosto
que o meu coração tem...
Sabe, de vez em quando
a minha imaginação
trabalha tanto,
que chego a ver você!
Chego a sentir sua mão!
Vê?...
Parece que você está aqui agora,
no entanto...
(Mariza Fontes de Almeida)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Sol posto

Sol posto. O sino ao longe dá Trindades
Nas ravinas do monte andam cantando
As cigarras dolentes… E saudades
Nos atalhos parecem dormitando…

É esta a hora em que a suave imagem
Do bem que já foi nosso nos tortura
O coração no peito, em que a paisagem
Nos faz chorar de dor e d’amargura…

É a hora também em que cantando
As andorinhas vão p’lo meio das ruas
Para os ninhos, contentes, chilreando…

Quem me dera também, amor, que fosse
Esta a hora de todas a mais doce
Em que eu unisse as minhas mãos às tuas!…
(Florbela Espanca)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Trago a alma repleta de flores
Trago a magia de doces amores
Colhidos dos olhos teus,
Um sorriso secreto nos lábios
que só tu desvendas,
uma impaciência
uma carência
um medo de adeus...
Trago um abraço ainda apertado
um calor de silêncio cansado
uma alegria que arde e explode
na surpresa dum prazer infindo.
E a gratidão de coração em festa
De quem redescobre
Um amor menino...
(Edilene Santos)

terça-feira, 30 de junho de 2009

Metáfora...um sonho

Perdidas ficam as palavras no ar
Tentando entender o que não se pode explicar
Metáforas de um sonho talvez, quem sabe.
De um querer, impossível de evitar.

Pensamentos, momentos imaginados.
Apenas sentir sem buscar explicação.
No sonho podemos, em instantes inventados
Versejar e voar, e ao que queremos dar vazão.

Imagino dos teus olhos a ternura despertando
E o olhar que me passa tamanha vibração
Já não me importo se é fantasia, ou verdade
Só consigo ouvir, o que diz meu coração.

Seu olhar preso, no verde profundo do meu.
Parece que vejo a alma, pura, cristalina.
Falando-me do sentimento que gera a vida.
Vida que sinto, me vendo em sua retina.

Esquecendo as horas, e o mundo lá fora.
Só saber que é noite, por ver da janela a lua.
Só ela sabe, que o que eu mais queria agora
É perder o rumo, e por um momento ser sua.

As horas são implacáveis e a noite eterna parece
Som das ondas bravias, revelando o mar tristonho.
E esse desassossego no peito também acontece
E fujo de mim mesma, voando no meu sonho.

Desejando que o sonho fosse verdade.
Estar além, longe de apenas poesia
Nossa vida cruzar de alguma forma
Transformando em realidade, a fantasia.

E envolvida, em seu braço ficaria.
Esqueceria o mundo, deixaria o silêncio falar
Fugir de mim, ouvir seu sorriso, e se você deixar
Estar na sua vida, ainda que em forma de poesia.
(Glória Salles)

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Talvez

A esta hora branda d’amargura,
A esta hora triste em que o luar
Anda chorando, Ó minha desventura
Onde estás tu? Onde anda o teu olhar?

A noite é calma e triste… a murmurar
Anda o vento, de leve, na doçura
Ideal do aveludado ar
Onde estrelas palpitam… Noite escura

Dize-me onde ele está o meu amor,
Onde o vosso luar o vai beijar,
Onde as vossas estrelas co fulgor

Do seu brilho de fogo o vão cobrir!
Dize-me onde ele está!… Talvez a olhar
A mesma noite linda a refulgir…
(Florbela Espanca)

sábado, 27 de junho de 2009

Olha pra mim amor
do mesmo jeito que te olho
repara no brilho dos meus olhos
quando estão de encontro aos seus
Sinta o meu coração pulsando de alegria
quando você se aproxima...
Pra você eu tenho os abraços mais calorosos
os beijos mais doces, os versos mais lindos
e o sentimento mais bonito.
(Maria Helena)

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Caçando estrelas

Que há la fora hoje que me encante
E torne minha manhã possível
E passível de deslumbramento?
Que coisa há concreta e visível
Que me proporcione bons momentos?
Abro a janela e nada vejo
Tudo repousa absolutamente igual
E adio a grandeza que almejo
Para um amanhã novo e fatal.
Todos os dias repito a tarefa
De buscar além do horizonte
Qualquer coisa que me valha o ontem.
Vou matando assim as madrugadas
As tardes e noites passadas
E ansiando um futuro que não tarda.

Que há lá fora hoje que me encontre?

(Edilene Santos - http://girassolpoetico.blogspot.com/)

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Os Dois Horizontes

Dois horizontes fecham nossa vida:

Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro,—
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.

Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais;
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.

Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.

Que cismas, homem? – Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? – Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.

Dois horizontes fecham nossa vida.
(Machado de Assis)

sábado, 20 de junho de 2009

Aos olhos d´Ele

É noite de luar casto e divino.
Tudo é brancura, tudo é castidade…
Parece que Jesus, doce bambino,
Anda pisando as ruas da cidade…

E eu que penso na suavidade
Do tempo que não volta, que não passa,
Olho o luar, chorando de saudade
De teus olhos claros cheios de graça!…

Oceanos de luz que procurando
O seu leito d’amor, andam sonhando
Por esta noite linda de luar…

Talvez o perfumado, o brando leito
Que procurais, ó olhos, no meu peito
Esteja à vossa espera a soluçar…
(Florbela Espanca)

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Esquecimento

Esse de quem eu era e era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapareceu.

Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei... tateio sombras... que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!

Descem em mim poentes de Novembro...
A sombra dos meus olhos, a escurecer...
Veste de roxo e negro os crisântemos...

E desse que era eu meu já me não lembro...
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos...!
(Florbela Espanca)

Silêncio!...

No fadário que é meu, neste penar,
Noite alta, noite escura, noite morta,
Sou o vento que geme e quer entrar,
Sou o vento que vai bater-te à porta...

Vivo longe de ti, mas que me importa?
Se eu já não vivo em mim! Ando a vaguear
Em roda à tua casa, a procurar
Beber-te a voz, apaixonada, absorta!

Estou junto de ti, e não me vês...
Quantas vezes no livro que tu lês
Meu olhar se pousou e se perdeu!

Trago-te como um filho nos meus braços!
E na tua casa... Escuta!... Uns leves passos...
Silêncio, meu Amor!... Abre! Sou eu!...
(Florbela Espanca)

terça-feira, 16 de junho de 2009

Estrela Cadente

Traço de luz… lá vai! Lá vai! Morreu.
Do nosso amor me lembra a suavidade…
Da estrela não ficou nada no céu
Do nosso sonho em ti nem a saudade!

Pra onde iria a ’strela? Flor fugida
Ao ramalhete atado no infinito…
Que ilusão seguiria entontecida
A linda estrela de fulgir bendito?…

Aonde iria, aonde iria a flor?
(Talvez, quem sabe?… ai quem soubesse, amor!)
Se tu o vires minha bendita estrela

Alguma noite… Deves conhecê-lo!
Falo-te tanto nele!… Pois ao vê-lo
Dize-lhe assim: “Por que não pensas nela?”
(Florbela Espanca)

Errante

Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.

Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura…

Meu coração não chega lá decerto…
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto…

Eu tecerei uns sonhos irreais…
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!
(Florbela Espanca)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Torre de névoa

Subi ao alto, à minha Torre esguia,
Feita de fumo, névoas e luar,
E pus-me, comovida, a conversar
Com os poetas mortos, todo o dia.

Contei-lhes os meus sonhos, a alegria
Dos versos que são meus, do meu sonhar.
E todos os poetas, a chorar,
Responderam-me então: "Que fantasia,

Criança doida e crente! Nós também
Tivemos ilusões, como ninguém,
E tudo nos fugiu, tudo morreu!..."

Calaram-se os poetas, tristemente...
E é desde então que eu choro amargamente
Na minha Torre esguia junto ao céu"!...
(Florbela Espanca)

sábado, 13 de junho de 2009

Sociedade

O homem disse para o amigo:
– Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.

O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.

O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.

Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
– Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.

No caminho o homem resmunga:
– Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: – Que idiota.

– A casa é um ninho de pulgas.
– Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.

E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.
(Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Mistério D´Amor

Um mistério que trago dentro em mim
Ajuda-me, minh’alma a descobrir…
É um mistério de sonho e de luar
Que ora me faz chorar, ora sorrir!

Viemos tanto tempo tão amigos!
E sem que o teu olhar puro toldasse
A pureza do meu. E sem que um beijo
As nossas bocas rubras desfolhasse!

Mas um dia, uma tarde… houve um fulgor,
Um olhar que brilhou… e mansamente…
Ai, dize ó meu encanto, meu amor:

Porque foi que somente nessa tarde
Nos olhamos assim tão docemente
Num grande olhar d’amor e de saudade?!
(Florbela Espanca)

Noite de saudade

A noite vem pousando devagar
Sobre a terra, que inunda de amargura…
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura…

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura…
E eu ouço a noite imensa soluçar!
E eu ouço soluçar a noite escura!

Porque és assim tão ’scura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu nem sei donde me vem…
Talvez de ti, ó noite!… Ou de ninguém!…
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!
(Florbela Espanca)

Sonhando...

É noite pura e linda. Abro a minha janela
E olho suspirando o infinito céu,
Fico a sonhar de leve em muita coisa bela
Fico a pensar em ti e neste amor que é teu!

D’olhos fechados sonho. A noite é uma elegia
Cantando brandamente um sonho todo d’alma
E enquanto a lua branca o linho bom desfia
Eu sinto almas passar na noite linda e calma.

Lá vem a tua agora… Numa carreira louca
Tão perto que passou, tão perto à minha boca
Nessa carreira doida, estranha e caprichosa

Que a minh’alma cativa estremece, esvoaça
Para seguir a tua, como a folha de rosa
Segue a brisa que a beija… e a tua alma passa!…
(Florbela Espanca)

terça-feira, 9 de junho de 2009

O teu segredo

O mundo diz-te alegre porque o riso
Desabrocha em tua boca, docemente
Como uma flor de luz! Meigo sorriso
Que na tua boca poisa alegremente!

Chama-te o mundo alegre. Ai, meu amor,
Só eu inda li bem nessa alegria!…
Também parece alegre a triste cor
Do sol, à tarde, ao despedir-se o dia!…

És triste; eu sei. Toda suavidade
Tão roxa, como é roxa uma saudade
É a tua alma, amor, cheia de mágoa.

Eu sei que és triste, sei. O meu olhar
Descobriu o segredo, que a cantar
Repoisa nos teus olhos rasos d’água!
(Florbela Espanca)

Noitinha

Nas nossas duas sinas tão contrárias
Um pelo outro somos ignorados:
Sou filha de regiões imaginárias,
Tu pisas mundos firmes já pisados.

Trago no olhar visões extraordinárias
De coisas que abracei de olhos fechados…
Em mim não trago nada, como os párias…
Só tenho os astros, como os deserdados…

E das riquezas e de ti
Nada me deste e eu nada recebi,
Nem o beijo que passa e que consola.

E o meu corpo, minh’alma e coração
Tudo em risos pousei na tua mão!…
…Ah! como é bom um pobre dar esmolas!…
(Florbela Espanca)

terça-feira, 2 de junho de 2009

É um querer mais que bem querer II

Meu amor, meu Amado, vê…repara;
Pousa os teus lindos olhos de oiro em mim,
– Dos meus beijos de amor Deus fez-me avara
Para nunca os contares até o fim.

Meus olhos têm tons de pedra rara
– É só para teu bem que os tenho assim –
E as minhas mãos são fontes de água clara
A cantar sobre a sede dum jardim.

Sou triste como folha ao abandono
Num parque solitário, pelo Outono,
Sobre um lago onde vogam nenufares…

Deus fez-me atravessar o teu caminho…
– Que contas dás a Deus indo sózinho,
Passando junto a mim, sem me encontrares? –
(Florbela Espanca)

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!


Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, 'stou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!
(Fernando Pessoa
Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
(Fernando Pessoa)

Quem sabe?

Eu sigo-te e tu foges. É este o meu destino:
Beber o fel amargo em luminosa taça,
Chorar amargamente um beijo teu, divino,
E rir olhando o vulto altivo da desgraça!

Tu foges-me, e eu sigo o teu olhar bendito;
Por mais que fujas sempre, um sonho há de alcançar-te
Se um sonho pode andar por todo o infinito,
De que serve fugir se um sonho há de encontrar-te?!

Demais, nem eu talvez, perceba se o amor
É este perseguir de raiva, de furor,
Com que eu te sigo assim como os rafeiros leais.

Ou se é então a fuga eterna, misteriosa,
Com que me foges sempre, ó noite tenebrosa!
(Florbela Espanca)

sábado, 23 de maio de 2009

Sonho Vago

Um sonho alado que nasceu um instante,
Erguido ao alto em horas de demência...
Gotas de água que tombam em cadência
Na minh'alma tristíssima, distante...

Onde está ele, o Desejado? O Infante?
O que há de vir e amar-me em doida ardência?
O das horas de mágoa e penitência?
O Príncipe Encantado? O Eleito? O Amante?

E neste sonho eu já nem sei que sou...
O brando marulhar dum longo beijo
Que não chegou a dar-se e que passou...

Um fogo-fátuo rútilo, talvez...
E eu ando a procurar-te e já te vejo!
E tu já me encontraste e não me vês!...
(Florbela Espanca)

Nossa casa

A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constroi-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho...que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,

Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro - tão bom! - Dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...
(Florbela Espanca)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Alma perdida

Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente…
Talvez sejas a alma, a alma doente
D’alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste… e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh’alma
Que chorasse perdida em tua voz!…
(Florbela Espanca)

O meu impossível

Minh’alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!

Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito.É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!…

Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!…Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto…

Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!…
(Florbela Espanca)

sábado, 9 de maio de 2009

É um querer mais que bem querer III

Frémito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,

Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!

E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que não me amas…

E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas…
(Florbela Espanca)

quinta-feira, 7 de maio de 2009

A minha dor

A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.
Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...
A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!
Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...
(Florbela Espanca)

Angústia

Tortura do pensar!Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!

E não se quer pensar!...e o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós...
Querer apagar no céu -- ó sonho atroz! --
O brilho duma estrela, com o vento!...

E não se apaga, não...nada se apaga!
Vem sempre rastejando como a vaga...
Vem sempre perguntando: "O que te resta?..."

Ah! não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta!
(Florbela Espanca)

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...
E não sou nada!...

(Florbela Espanca)

A mulher

Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!
Quantas morrem saudosa duma imagem.
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca rir alegremente!
Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doce alma de dor e sofrimento!
Paixão que faria a felicidade.
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!

(Florbela Espanca)

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Em busca do amor

O meu destino disse-me a chorar:
"Pela estrada da vida vai andando,
E, aos que vires, interrogando
Acerca do amor, que hás de encontrar."

Fui pela estrada a rir e a cantar,
As contas do meu sonho desfiando...
E noite e dia, à chuva e ao luar,
Fui sempre caminhando e perguntando...

Mesmo a um velho eu perguntei: "Velhinho,
Viste o Amor acaso em teu caminho?"
E o velho estremeceu... olhou... e riu...

Agora pela estrada, já cansados,
Voltam todos pra trás desanimados...
E eu paro a murmurar: "Ninguém o viu!..."

(Florbela Espanca)

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Aquele olhar envolvente,
que com meus olhos cruzou
fez qual estrela cadente:
Mostrou-me a luz... e passou.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Dana

Emaranhado de versos e guerrilhas
o poeta, a poetiza
o guerreiro, a bailarina
o musico, a batalhadora
Lançam ao vento suas rimas
seus olhares, seus amores e dores
Ele daqui ela de lá
ela é a pena e ele o tinteiro
pintam sorrisos
sonham acordes
A geografia os divide
eu apenas assisto
A menina deslocada
O rapaz vislumbrado
a noite é longa
sem morada ela não o quer incomodar
já já o dia chega, ele cedo irá acordar
ela se preocupa
pede abrigo
enquanto isso ele e eu apenas concluímos:
É amigo!
Mal sabe ela que a manhã que chega depois de uma noite em claro
pode ser mais cândida do que o alvo luar....
(André Luiz - Universo em translação/Lágrima Terra)

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Aonde?

Ando a chamar por ti, demente, alucinada,
Aonde estás, amor? Aonde… aonde… aonde?…
O eco ao pé de mim segreda… desgraçada…
E só a voz do eco, irônica, responde!

Estendo os braços meus! Chamo por ti ainda!
O vento, aos meus ouvidos, soluça a murmurar;
Parece a tua voz, a tua voz tão linda
Cantando como um rio banhado de luar!

Eu grito a minha dor, a minha dor intensa!
Esta saudade enorme, esta saudade imensa!
E Só a voz do eco à minha voz responde…

Em gritos, a chorar, soluço o nome teu
E grito ao mar, à terra, ao puro azul do céu:
Aonde estás, amor? Aonde… aonde… aonde?…

(Florbela Espanca)

Balada

Amei-te muito, e eu creio que me quiseste
Também por um instante nesse dia
Em que tão docemente me disseste
Que amavas ‘ma mulher que o não sabia.

Amei-te muito, muito!Tão risonho
Aquele dia foi, aquela tarde!…
E morreu como morre todo o sonho
Deixando atrás de si só a saudade! …

E na taça do amor, a ambrosia
Da quimera bebi aquele dia
A tragos bons, profundos, a cantar…

O meu sonho morreu… Que desgraçada!
………………………………
E como o rei de Thule da balada
Deitei também a minha taça ao mar …

(Florbela Espanca)

Só...

Vejo-me triste, abandonada e só
Bem como um cão sem dono e que o procura,
Mais pobre e desprezada do que Job
A caminhar na via da amargura!

Judeu Errante que a ninguém faz dó!
Minh’alma triste, dolorida e escura,
Minh’alma sem amor é cinza e pó,
Vaga roubada ao Mar da Desventura!

Que tragédia tão funda no meu peito!…
Quanta ilusão morrendo que esvoaça!
Quanto sonho a nascer e já desfeito!

Deus! Como é triste a hora quando morre…
O instante que foge, voa, e passa…
Fiozinho de água triste…a vida corre…

(Florbela Espanca)

sábado, 28 de março de 2009

Não digas nada

Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.
(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 26 de março de 2009

Esquecer...


Tento tirar você dos meus pensamentos
Esquecer tudo que lembra a ti
Seu olhar tão lindo
seu carinho
Os beijos
Os planos...
Sumir com as miragens do que poderia ter sido
Tento acalmar o coração
E não sentir a dor da ilusão
Mas tudo parece vão
A cada momento você vem ao pensamento
Às vezes aparece nos versos de um poema
na letra de uma canção
Nas lembranças do passado que insistem
em fazer parte do presente...

Mas a verdade é que
Ainda não aprendi a esquecer
(Maria Helena)

sábado, 14 de março de 2009

Sem remédio

Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou ...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!

(Florbela Espanca)

sexta-feira, 13 de março de 2009

INCONSTÂNCIA

Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há de partir também...nem eu sei quando...

(Florbela Espanca)

sábado, 7 de março de 2009


Sonhava em ter você
Em te abraçar
Encostar meus lábios nos seus
Me perder no seu tímido olhar
Queria você por perto...
Hoje sei que isso não é possível
Nossos caminhos seguem rumos diferentes
Por mais que eu queira o contrário, é em vão...
Você tomou sua estrada
E eu fiquei na minha
com os sonhos espalhados pelo asfalto...
(maria Helena)

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Lágrimas Ocultas

Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

Florbela Espanca

Amor que morre

O nosso amor morreu... Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria...
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre... e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia...

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer,
E são precisos sonhos para partir.

E bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
De outro amor impossível que há-de vir!


Florbela Espanca

Navegando...

Desancorada a canoa segue o fluxo das águas
o rio é tenso, mar bravo de água doce
eu ao relento, inebriado
ouço os cânticos da correnteza
desacorrento meu espirito
a névoa se dissipa
o ar é leve e fresco
a embarcação dança o balanço fluvial,
estou em paz.
O rio continua me guiando
agora sua superfície é límpida
com a ponta dos dedos deixo o rastro
que forma pequenas ondas
dissolvido, um espelho se cria em meio as folhas
olho d'água me mostrando quem sou
árvores de ponta cabeça,
o céu está sob mim.
As folhas se despedem com frequência,
contra a nascente sigo
ainda não sei qual o destino,
toda margem é terra firme
não sei onde ancorar.
Um frio me toma o peito
já não vejo nada
tudo é tão abstrato e escuro
imperceptível é minha força diante minha angustia
não estou só.
Animais hostis vidram seus olhos e rugidos
desejando meu intelecto,
por um instante de lucidez em pleno desespero
meu coração me leva à um lugar onde pensamento algum me tirará do prumo.
A canoa continua a bailar
preciso sair dali
me afogando com o ar que pesa em meus pulmões
vejo minha salvação.
Diluído é meu esclarecimento mente à dentro...
Há remos na embarcação,
independente de pra onde o rio siga
de agora em diante, são eles que me darão a direção!
(André Luiz Pereira)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Os versos que te fiz

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

Florbela Espanca

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Para ti

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
(Mia Couto)

sábado, 24 de janeiro de 2009

Fumo

Longe de ti são ermos os caminhos.
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisantemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

(Florbela Espanca)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Sonhar de sonhar

Gostaria de sair caminhando
por aí,
entre notas musicais,
sozinha, olhos, fechados, sonhando...
...em sonhar cada vez mais!...
Gostaria de, no meio da escala,
encontrar-te assim, de repente,
e que as notas
te dissessem tudo o que sente
essa caixa de rimas sem jeito,
da forma precisa de um coração,
que me bate louca dentro do peito!
E que, depois de tudo te falar,
cantasse, numa linda canção,
todo esse acorde de amores
que guardei para te dar!...
(Mariza Fontes de Almeida)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Eu queria...

Perder-me em seu olhar tímido
Sentir seus lábios suaves de novo
Poder te abraçar sem receio
de que alguém venha a se ferir...

Demonstrar tudo o que sinto sem medo
Mostrar-te que eu posso e quero
fazer você feliz!
(Maria Helena)

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Gravidez

Gravidez

Nasceu em mim
acalentei
sonhei nosso futuro
imaginei como seria
a cada dia tomava mais meu espaço
primeiro o desespero
depois o desejo
a necessidade
cantei pro seus sonos
fomos um por muito tempo
veio ao mundo
amamentei
criei
tentei educar
o tempo foi passando
a criança se tornou adolescente
adulta foi pra vida
me deixou sangrando
quando em lágrimas me disse:
desculpe amor,
mas eu sua metade
decidi que agora é hora
e eu parto...
e então meu amor morreu
diante a possibilidade de ver outro nascer!
(André)

domingo, 4 de janeiro de 2009

O ciclone

Choro
E as águas que minam em meus olhos
E irrigam as minhas rugas
Buscam nestas fugas
Se afastarem da tristeza
Mas como?
Se a angústia tem nas lágrimas
a sua fortaleza?

Conto a ti a minha dor
se não te moves para tanto
Levo a ti, em versos, o meu amor

Rompeste nosso elo
Resquício, frangalho, farelo...
Já não sou uma unidade
apenas fragmentos
mas ainda pulsa o órgão cardíaco
bombeando sentimentos
aumentando a gravidade
e no crepúsculo da vida
me venceu a enfermidade

Que chovam então serestas
e palestras te dêem conta
do quão grande é a nostálgia
dos meus olhos, já cinzentos
Pela lacrimorragia a banhar a minha face
pois no enlance de um curto matrimônio
assim como o demônio a fugir da santa cruz
me deixaste e apagaste a minha luz
logrando o meu amor
até que eu chegasse ao fim
dizendo não com o teu furor
ao mais sincero sim

Te escrevi este gazel
acreditando se ainda gostares
deste pobre menestrel
ouvirá estes versos entrestecidos
como o afã da tua alma
muito além dos teus ouvidos
mas se acaso ignorares essa nobre confissão
não creio que muito me reste
mas mesmo no lúgubre leito
é possível que, no peito, o amor se manifeste
E quando a morte então chegar
para levar-me como um ciclone
antes do último suspiro
sorrindo, direi seu nome.
(Serginho Poeta)