quinta-feira, 18 de setembro de 2008

CASTELÃ DA TRISTEZA

Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor ...
E nunca em meu castelo entrou alguém!

Castelã da Tristeza, vês? ... A quem? ...
– E o meu olhar é interrogador –
Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr ...
Chora o silêncio ... nada ... ninguém vem ...

Castelã da Tristeza, porque choras
Lendo, toda de branco, um livro de horas,
À sombra rendilhada dos vitrais? ...

À noite, debruçada, plas ameias,
Porque rezas baixinho? ... Porque anseias? ...
Que sonho afagam tuas mãos reais?

(Florbela Espanca)

Secura

Nos lagos congelados da Rússia a água falta,
nos solos rachados dos sertões brasileiros a água falta,
nas torneiras das metrópolis Norte Americanas a água falta,
na margem dos rios africanos a água falta.
A secura resseca os lábios do mundo, a alma do homem.
O peito respira o medo, perdido na poeira do tempo,
olhos úmidos, vida dura de da dó
me resgata a prosa impura do caicó.
O pássaro negro é a atmos-fera
que faz voltas aspirais sobre os homens,
de tocaia espera o momento de devorar o que sobrou...
Mas o que sobrou?
O que essa antinatureza de pobreza corpórea, de espectro simplória,
deixará à qualquer carniceiro do futuro? À seus filhos?
Uma letra no muro despedaçado das lamentações...
O QUE FIZEMOS DE NÓS?!!!
(Daniel Fagundes - Vivenda Poética)

domingo, 14 de setembro de 2008

Cantigas leva-as o vento...

A lembrança dos teus beijos
Inda na minh'alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas dum livro triste.

Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desapar'cido
Revive numa saudade!

(Florbela Espanca)

sábado, 13 de setembro de 2008

Sobre as fitas nos cabelos de Maria...

Lá vai Maria
Andando pela rua de mão dada ao pai
trancinhas balançando pra lá e pra cá
e fitas ao vento
eternamente livres enquanto presas à Maria

Às vezes, Maria se ira e espera algo
como se iria do céu ao chão
qualquer pena ou pluma
dentre os zilhões de quilômetros da superfície da Terra
atingir-lhes os cabelos e fazê-la sentir-se especial
grande como a Grande Muralha ou
grande como palavra começada com letra grande

Há horas em que ela se cansa
e se sente como o pacato cidadão comum, desses de perfil traçado
camisa bem passada e expressão regular
e ela se sente por dentro dos sapatos dos outros
E ela diz pra si mesma que isso são assuntos de mulher e, por hora
ela é apenas menina

E, indiferente e preocupada com as coisas da vida
aqui de fora, nos resta apenas acompanhar o balançado das fitas dos seus cabelos
Entre vestidinhos, bonecas, trejeitos
Lá vai Maria
A mão à qualquer um que quiser lhe acompanhar
Pois, de guias ela não precisa
Amar, iria até ela amar...iria
quem sabe, um dia...
Pro sim e pro não
Eu gosto apenas de olhá-la
De esmerar o meu convívio com ela
De poesiar o seu simples caminhar
As vezes eu sinto ela
E, aqui de longe sinto até um pouco
que ela, sou eu.

E hajam neologismos pra Roseá-la o suficiente.
(Tiago Belizário - Um Homem em branco)

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Anseios

Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais!
Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!
Tu chamas ao meu seio, negra prisão!...
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!
Não ´stendas tuas asas para o longe...
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!...

(Florbela Espanca)

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Um sonho de Ícaro



Leve vento,
leva esses lamentos
esses pensamentos
Leva vento, Leve...

Leve vento,
tu que és tão livre
entre o céu e a terra,
aceite o peso dessa reza.

Leve vento, leva
pelos cantos do mundo
as poucas palavras
de um sábio vagabundo.

Leve, vento leva
pois eu sempre enraizado
não darei nenhum passo.
Leve vento maroto...

Leve vento
pois na volta do mundo
eu me reinvento e voo ao teu lado,
como Ícaro ou como pássaro.
(André - Universo em translação)

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Sossega, Coração! Não desesperes!

Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperença a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Folhas de Rosa

Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo...

E falo-lhes d’amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente...

Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m’embriaga

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que reflectia outrora tantos risos,
E agora reflecte apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mais fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...

(Florbela Espanca)