sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O tempo que passou

O tempo que passou me deixou sem tempo
e correr atrás de mim mesmo passou à ser meu tormento
meu passa-tempo predileto "o retransfigurar-se",
"o recontextualizar-se", "o me ser de novo".

Nessa busca separo-me:
-Um pra cada lado!! Vai, vai!!
Trago-me à força muitas vezes,
reabro cicatrizes,
sigo numa pilhagem
que ao mesmo tempo suja e purifica.

Um cata-vento ao avesso, trazendo de volta tudo que perdi
tudo que o tempo me roubou...
Quero de volta mesmo que não mereça, mesmo que não precise,
quero acumular-me em mim, pra me refazer, me reconhecer.

Envelhecendo no processo de compreender-me à fundo
vou a todo segundo redescobrindo-me e desaparecendo
pra depois de tudo abraçar a morte e viver-me
deixando que meu crepúsculo encante a aurora do dia seguinte.
(Daniel Fagundes - Vivenda Poética)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Canto dos Palmares

Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões
porque o meu canto é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!

Há batidos fortes
de bombos e atabaques em pleno sol
Há gemidos nas palmeiras
soprados pelos ventos
Há gritos nas selvas
invadidas pelos fugitivos...

Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de todas as raças
de mão fechada contra todas as tiranias!

Fecham minha boca
mas deixam abertos os meus olhos
Maltratam meu corpo
minha consciência se purifica
Eu fujo das mãos do maldito senhor!
Meu poema libertador
é cantado por todos, até pelo rio.

Meus irmãos que morreram
muitos filhos deixaram
e todos sabem plantar e manejar arcos
Muitas amadas morreram
mas muitas ficaram vivas,
dispostas a amar
seus ventres crescem e nascem novos seres.

O opressor convoca novas forças
vem de novo ao meu acampamento...
Nova luta.
As palmeiras ficam cheias de flechas,
os rios cheios de sangue,
matam meus irmãos, matam minhas amadas,
devastam os meus campos,
roubam as nossas reservas;
tudo isto para salvar a civilização e a fé...

Nosso sono é tranqüilo
mas o opressor não dorme,
seu sadismo se multiplica,
o escravagismo é o seu sonho
os inconscientes entram para seu exército...

Nossas plantações estão floridas,
Nossas crianças brincam à luz da lua,
nossos homens batem tambores,
canções pacíficas,
e as mulheres dançam essa música...

O opressor se dirige aos nossos campos,
seus soldados cantam marchas de sangue.
O opressor prepara outra investida,
confabula com ricos e senhores,
e marcha mais forte,
para o meu acampamento!
Mas eu os faço correr...

Ainda sou poeta
meu poema levanta os meus irmãos.
Minhas amadas se preparam para a luta,
os tambores não são mais pacíficos,
até as palmeiras têm amor à liberdade...

Os civilizados têm armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema é para os meus irmãos mortos.
Minhas amadas cantam comigo,
enquanto os homens vigiam a terra.

O tempo passa
sem número e calendário,
o opressor volta com outros inconscientes,
com armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema é simples,
como a própria vida.
Nascem flores nas covas de meus mortos
e as mulheres se enfeitam com elas
e fazem perfume com sua essência...

Meus canaviais ficam bonitos,
meus irmãos fazem mel,
minhas amadas fazem doce,
e as crianças lambuzam os seus rostos
e seus vestidos feitos de tecidos de algodão
tirados dos algodoais que nós plantamos.

Não queremos o ouro porque temos a vida!
E o tempo passa, sem número e calendário...
O opressor quer o corpo liberto,
mente ao mundo
e parte para prender-me novamente...

- É preciso salvar a civilização,
Diz o sádico opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas selvas
a grandeza da civilização
a Liberdade!
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....

- É preciso salvar a fé,
Diz o tratante opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas matas
a grandeza da fé a Liberdade...
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....

Saravá! Saravá!
repete-se o canto do livramento,
já ninguém segura os meus braços...
Agora sou poeta,
meus irmãos vêm comigo,
eu trabalho, eu planto, eu construo
meus irmãos vêm ter comigo...

Minhas amadas me cercam,
sinto o cheiro do seu corpo,
e cantos místicos sublimizam meu espírito!
Minhas amadas dançam,
despertando o desejo em meus irmãos,
somos todos libertos, podemos amar!
Entre as palmeiras nascem
os frutos do amor dos meus irmãos,
nos alimentamos do fruto da terra,
nenhum homem explora outro homem...

E agora ouvimos um grito de guerra,
ao longe divisamos as tochas acesas,
é a civilização sanguinária que se aproxima.
Mas não mataram meu poema.
Mais forte que todas as forças é a Liberdade...

O opressor não pôde fechar minha boca,
nem maltratar meu corpo,
meu poema é cantado através dos séculos,
minha musa esclarece as consciências,
Zumbi foi redimido...
(Solano Trindade)

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Calma minha

Hoje eu tive paz
traguei-a lentamente.

Como se não tivesse mais forças,
meu corpo relaxou-se
meus olhos se fecharam
e minha boca contorceu
num sorriso aliviado.

Achei que fosse o fim.

Acompanhado de mim mesmo
ouvi em meio ao silêncio gritante
minha ritmada respiração.

E num atento olhar pra dentro
fluindo como cachoeira
com sua queda para cima
me descobri um lago calmo
inundado só de mim!
(André Pereira)