terça-feira, 29 de maio de 2012

Não, não é cansaço...

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Com tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?
É uma sensação abstracta
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...
(Álvaro de Campos)

sexta-feira, 25 de maio de 2012

IX

Perdi os meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma…
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma…
– Tantos escolhos! Quem podia vê-los?
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!

Perdi minha taça, o meu anel,
a minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de oiro e pedrarias…

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas…
Sobre o meu coração pesam montanhas…
Olho assombrada as minhas mãos vazias…
(Florbela Espanca - do livro Charneca em flor)

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa,
      Substitui o calor.
P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.
      Este luzir é melhor.

O que é a vida? O espaço é alguém pra mim.
      Sonhando sou eu só.
A luzir, em quem não tem fim
      E, sem querer, tem dó.

Extensa, leve, inútil passageira,
     Ao roçar por mim traz
Uma ilusão de sonho, em cuja esteira
     A minha vida jaz.

Barco indelével pelo espaço da alma,
     Luz da candeia além
Da eterna ausência da ansiada calma,
     Final do inútil bem.

Que, se quer, e, se veio, se desconhece
    Que, se for, seria
O tédio de o haver... E a chuva cresce
    Na noite agora fria.
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 8 de maio de 2012

Tenho dó das estrelas

Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo ...
Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir ...

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão
Qualquer coisa assim
Como um perdão?
(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Desalento

Uma pesada, rude canseira
Toma-me todo. Por mal de mim,
Ela me é cara... De tal maneira,
Que às vezes gosto que seja assim...

É bem verdade que me tortura
Mais que as dores que já conheço.
E em tais momentos se afigura
Que estou morrendo... que desfaleço...

Lembrança amarga do meu passado...
Como ela punge! Como ela dói!
Porque hoje o vejo mais desolado,
Mais desgraçado do que ele foi...

Tédios e penas cuja memória
Me era mais leve que a cinza leve,
Pesam-me agora... contam-me a história
Do que a minh'ama quis e não teve...

O ermo infinito do meu desejo
Alonga, amplia cada pesar...
Pesar doentio... Tudo o que vejo
Tem uma tinta crepuscular...

Faço em segredo canções mais tristes
E mais ingênuas que as de Fortúnio:
Canções ingênuas que nunca ouvistes,
Volúpia obscura deste infortúnio...

Às vezes volvo, por esquecê-la,
A vista súplice em derredor.
Mas tenha medo do que sem ela
A desventura seja maior...

Sem pensamentos e sem cuidados,
Minh'alma tímida e pervertida,
Queda-se de olhos desencantados
Para o sagrado labor da vida...
(Manuel Bandeira)