domingo, 19 de outubro de 2014

Que seja agora

Se entrega e vai.
Vai cambaleando mas saia do lugar.
Não importa se o passo é torto,
Se o sapato está gasto
Se o salário é pouco.
Se entrega e vai.

Vai, abraça a causa que te cabe
Abraça o coração que te ama
Abraça o vento
Procure seu centro.
Anda, desanda, re-anda,
Mas vai!

Olhe para o céu
Brinque com as nuvens
Dance sozinha
Ou sozinho na rua
Não importa o que
O onde
O como
Só o quando.
Que seja agora!

Se entrega e vai!

(Daniela Meira - Primaveira de 2014)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Canção deste natal

Procurou na terra
procurou no ar
procurou na guerra
e não soube achar.
Procurou no rio
procurou no mar
no telégrafo sem fio
e outra vez no ar.
Muito velho e sábio
foi que se lembrou
dentro dele mesmo
nunca procurou. 

(Carlos Pena Filho)

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Rotatória

As placas indicavam o contrário.
A menina dobrou o mapa,
guardou a bússola,
dispensou a lógica,
a máxima, o sextante,
quebrou o molde,
rasgou o formulário,
seguiu adiante.
Preferiu se aventurar no imaginário.

(Flora Figueiredo)

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O constante diálogo

Há tantos diálogos

Diálogo com o ser amado
                   o semelhante
                   o diferente
                   o indiferente
                   o oposto
                   o adversário
                   o surdo-mudo
                   o possesso
                   o irracional
                   o vegetal
                   o mineral
                   o inominado

Diálogo consigo mesmo
            com a noite
            os astros
            os mortos
            as ideias
            o sonho
            o passado
            o mais que futuro

Escolhe teu diálogo
                           e
tua melhor palavra
                           ou
teu melhor silêncio
Mesmo no silêncio e com o silêncio
dialogamos.

(Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Fêmea-Fênix

Navego-me eu–mulher e não temo,
sei da falsa maciez das águas
e quando o receio
me busca, não temo o medo,
sei que posso me deslizar
nas pedras e me sair ilesa,
com o corpo marcado pelo olor
da lama.

Abraso-me eu-mulher e não temo,
sei do inebriante calor da queima
e quando o temor
me visita, não temo o receio,
sei que posso me lançar ao fogo
e da fogueira me sair inunda,
com o corpo ameigado pelo odor
da chama.

Deserto-me eu-mulher e não temo,
sei do cativante vazio da miragem,
e quando o pavor
em mim aloja, não temo o medo,
sei que posso me fundir ao só,
e em solo ressurgir inteira
com o corpo banhado pelo suor
da faina.

Vivifico-me eu-mulher e teimo,
na vital carícia de meu cio,
na cálida coragem de meu corpo,
no infindo laço da vida,
que jaz em mim
e renasce flor fecunda.
Vivifico-me eu-mulher.

(Conceição Evaristo)

sábado, 15 de março de 2014

Rio

Hoje amanheci rio,
Não fico no mesmo lugar
Minhas margens não me comprimem
Minhas águas estão a navegar

Hoje amanheci rio,
Vou beber e me banhar
Não quero barco!
Hoje sou redemoinho, pode deixar
Não vou me afogar

Hoje amanheci rio,
Quero anoitecer me encontrando com o mar
Pescar estrelas
E adormecer na brisa do ar

(Elizandra Souza - retirado do livro "Águas da cabaça")

domingo, 12 de janeiro de 2014

Encontro

Na espera

Pelo mágico encontro
Esqueço tudo, mente vazia, peito cheio
Anseio, da noite mais pura
A luz, apenas o brilho da lua

O banho é ritual
O corpo responde ao calor
A meia-lua, me visto quase nua
Pele negra macia, cheiro de flor

No ouvido, som da diáspora negra
Em ânsia, palpito, aperto o peito
Suspiro, e acalmo o desejo
Aguardo o melhor desfecho.

Você chega...

Conhece meus caminhos
Se ajeita, bocas salivam vinho
A alma grita, libero sem pudor
Matas banhadas, o que exala, é amor

Flutuo na fervura, queimo
Aconchego no abraço e desfaleço
Idealizo o eterno, meu abrigo
No encontro contigo, me encontro comigo.

(Carmen Faustino, poesia extraída do livro "Pretextos de mulheres negras")