quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Poema de Janeiro

O céu hoje acordou cinzento
sem nuvens
sem estrelas
sem nada.
Devo agora calçar os sapatos
Retocar tim tim por tim tim o coração
O chão da cidade
Não há mais sonhos nem arco-íris na íris do meu olhar
Que antes, bem antes
Era tanto mar, tantos rios, tontos risos
Devo agora fazer as malas
Apertar com cuidado poucas roupas
alguns amigos
Cartões postais pra não te perder de vista
E o eterno vício de querer mais que nunca o exercício de viver
Sem ter que pegar no seu pé para ensinar o ritmo
Por sermos tão desiguais dançamos em diferentes trilhos
Devo agora caminhar
Não deixei grãos de milhos na estrada
Mas devo saber voltar

(Miró da Muribeca)

domingo, 16 de outubro de 2011

A solidão e a sua porta

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)

Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

Arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida

Com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.
(Carlos Pena Filho)

sábado, 15 de outubro de 2011

Quem é você

Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.

Nasci numa rebaixa de serra
Entre serras e morros.
“Longe de todos os lugares”.
Numa cidade de onde levaram
o ouro e deixaram as pedras.

Junto a estas decorreram
a minha infância e adolescência.

Aos meus anseios respondiam
as escarpas agrestes.
E eu fechada dentro
da imensa serrania
que se azulava na distância
longínqua.

Numa ânsia de vida eu abria
O vôo nas asas impossíveis
do sonho.

Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia caída e a república
que se instalava.

Todo o ranço do passado era presente.
A brutalidade, a incompreensão, a ignorância, o carrancismo.
Os castigos corporais.
Nas casas. Nas escolas.
Nos quartéis e nas roças.
A criança não tinha vez,
Os adultos eram sádicos
aplicavam castigos humilhantes.

Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.

Nunca os algarismos me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
Para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.

Sendo eu mais doméstica do
que intelectual,
não escrevo jamais de forma
consciente e racionada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a
consciência de ser autêntica.

Nasci para escrever, mas, o meio,
o tempo, as criaturas e fatores
outros, contra-marcaram minha vida.

Sou mais doceira e cozinheira
Do que escritora, sendo a culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata
a que está ligada à vida e
à saúde humana.

Nunca recebi estímulos familiares para ser literata.
Sempre houve na família, senão uma
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada
a essa minha tendência inata.
Talvez, por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim, no fundo dos meus
reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo.
Sobrevivi, me recompondo aos
bocados, à dura compreensão dos
rígidos preconceitos do passado.

Preconceitos de classe.
Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos.
Férreos preconceitos sociais.

A escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras o destino não me deu.

Foi assim que cheguei a este livro
Sem referências a mencionar.

Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.

Nem Menção Honrosa.
Nenhuma Láurea.

Apenas a autenticidade da minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade,
e este anseio:
procuro superar todos os dias
Minha própria personalidade
renovada,
despedaçando dentro de mim
tudo que é velho e morto.

Luta, a palavra vibrante
que levanta os fracos
e determina os fortes.

Quem sentirá a Vida
destas páginas...
Gerações que hão de vir
de gerações que vão nascer.

(Cora Coralina - Meu Livro de Cordel,1998)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A mensagem do mar

Dinamitei o cais cheio de espaços precários
Espargindo fragmentos de minhas emoções
Pedi ao mar que levasse os sonhos solitários
Numa concha qualquer guardei as recordações

Encarcerei os sonhos que andavam a deriva
Tranquei os pactos alicerçados no amanhã
Não ouvi a censura das vozes prerrogativas.
Rabisquei versos vagos, cheios de rimas vãs.

O conceito de certezas castas, a maré levou.
E na dúvida do momento repudiei a crença
Abandonada na areia, a onda meu pé beijou.
Irrigando o solo árido da minha indiferença

Entendi a mensagem composta neste azul abissal
No meu poema há reticências, jamais ponto final.
(Glória Salles)