quinta-feira, 28 de agosto de 2008

TORTURA

Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
– E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento! ...

Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
– E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento ...

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!

(Florbela Espanca)

Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ...

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

(Florbela Espanca)

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Infância Roubada

Ferro e concreto separam desejo e realidade
a vida acorrentada ao relógio
determina até o horário de ir ao banheiro
em certa hora da noite, só lhe resta o travesseiro.

O sol cortado pelas grades
não ofusca o brilho nos olhos do menino
as mãos seguram com firmeza cada barra
esperando contar as pedras perdidas na calçada

Na rua outros cantam, correm, gritam
e ali, o aliado da tristeza apelas olha.
Imagina que um dia seu mundo será tão grande
quanto à distancia até a esquina.

Vendo os carros passarem
se pergunta por quê foi condenado?
Por quê não nasceu como pássaro?
Por quê? Por quê? Por quê...
Por quê estava ali enjaulado?
Sendo que único mau foi ter nascido urbanizado.

Isso mesmo, enquanto uns batem no peito
com orgulho de serem acinzentados
outros, com olhos lunares se tornam sedentários
engolindo o desejo enigmático de fazer o asfalto
sentir o calor de seus livres pés descalços...
(André - Universo em translação)

Só de sacanagem - Elisa Lucinda

Meu coração está aos pulos!
Quantas vezes minha esperança será posta à prova?
Por quantas provas terá ela que passar?
Tudo isso que está aí no ar, malas, cuecas que voam
entupidas de dinheiro, do meu dinheiro, que reservo
duramente para educar os meninos mais pobres que eu,
para cuidar gratuitamente da saúde deles e dos seus
pais, esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e
eu não posso mais.
Quantas vezes, meu amigo, meu rapaz, minha confiança
vai ser posta à prova? Quantas vezes minha esperança
vai esperar no cais?
É certo que tempos difíceis existem para aperfeiçoar o
aprendiz, mas não é certo que a mentira dos maus
brasileiros venha quebrar no nosso nariz.
Meu coração está no escuro, a luz é simples, regada ao
conselho simples de meu pai, minha mãe, minha avó e
dos justos que os precederam: "Não roubarás", "Devolvao lápis do coleguinha",
"Esse apontador não é seu, minha filhinha".
Ao invés disso, tanta coisa nojenta e torpe tenho tido
que escutar.
Até habeas corpus preventivo, coisa da qual nunca
tinha visto falar e sobre a qual minha pobre lógica
ainda insiste: esse é o tipo de benefício que só ao
culpado interessará.
Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do
meu povo sofrido, então agora eu vou sacanear:
mais honesta ainda vou ficar.
Só de sacanagem!Dirão: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todoo mundo rouba"
e eu vou dizer: Não importa, será esse
o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez.
Eu, meu irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a
quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês.
Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o
escambau.
Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde
o primeiro homem que veio de Portugal".
Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal.
Eu repito, ouviram? IMORTAL!
Sei que não dá para mudar o começo mas, se a gentequiser, vai dá para mudar o final!

domingo, 24 de agosto de 2008

Efémero Paradoxo

E é quando me procuro
que me perco diante à ti
resquícios de um alegre passado
que hoje não me faz sorrir
Grandiosos dizeres e juras
emudecidos pelos elos partidos
desconhecido Eu que se mantémdiante à você,
esse você que eu não criei
Domina-me livrando-me de me prender à algo ou alguém
Dia-a-dia dividindo meus sentimentos
sem o intuito de compreende-los
Esse Eu-Você que foi criado
que me intriga, que me enlouquece
Esse Você-Eu, que não somemesmo quando quebro o espelho
És parte de mim
esse Eu que não sai de ti
mas o que queres?
Minha vida ou meu fim?
(André - Universo em translação)

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(Carlos Drummond de Andrade)

Meu Grande Poema

Quando os homens tiverem tempo
de ouvir música
de cuidar de seus jardins
me encontrareis cantando
um grande poema

Quando forem destruídos os preconceitos
quando as mulheres puderem sorrir
para todos os homens
me encontrareis cantando
um grande poema

Quando houver trabalho livre
quando for franco o amor
me encontrareis cantando
um grande poema
(Solano Trindade)