quinta-feira, 16 de abril de 2015

luto por mim mesmo

        a luz se põe
em cada átomo do universo
       noite absoluta
desse mal a gente adoece
       como se cada átomo doesse
como se fosse esta a última luta
      o estilo desta dor
é clássico
     dói nos lugares certos
sem deixar rastos
     dói longe dói perto
sem deixar restos
     dói nos himalaias, nos interstícios
e nos países baixos
     uma dor que goza
como se doer fosse poesia
     já que tudo mais é prosa
Faça os gestos certos,
o destino vai ser teu aliado,
ouço uma voz dizendo
do fundo mais fundo do passado.
Hoje, não faço nada direito,
que é preciso muito mais peito
pra fazer tudo de qualquer jeito.
Ai do acaso,
se não ficar do meu lad
o.


(Paulo Leminski)

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Naquela manhã quando lhe disseram “bom dia”
Nada sabiam dos percalços em seu caminho
Nem notaram que aquele sorriso gentil
Era sua tentativa diária de driblar
As intercorrências da pobreza.

Outono travestido de inverno
Vento frio atravessando a espinha
Antes das 6h da manhã já estava ele
Ensaiando um banho gelado
Na praga do chuveiro queimado.

Enquanto isso
Nas redes sociais
O avanço do conservadorismo
Era a pauta mais urgente do dia
Diante do discurso de um fundamentalista
Com posto de deputado.

Mas disso, ele nada via, nem nada entendia.
Seguia com sua obrigação de chegar ao trabalho
Ser um bom funcionário,
Quem sabe em algum momento,
Merecidamente alcançasse um aumento.

Convidado para o almoço com os colegas
No restaurante da esquina do trampo
Recusou justificando inúmeras atribuições para dar conta
E novamente mostrou seu gentil sorriso
Para disfarçar a fome e a vontade
Que as migalhas em sua carteira
Não lhe deixavam sanar.

Tentava não pensar nas questões presentes
A cada final de mês.
Abstraiu olhando os carros pela janela
E sem querer lembrou de um tal filme Velozes e Furiosos
(ele nem tão veloz, nem tão furioso)
Se deu conta que há meses não lhe sobra um qualquer
Para sequer um cineminha no shopping.

Homem de conduta padrão,
Era casa-trabalho-trabalho-casa
Ele que nem de cachaça era
Reduzido a um homem-máquina
Alienado de si mesmo.

Fim de expediente

Diante da carona negada pelo motorista
Seu sorriso gentil esmoreceu
Sentia sua dignidade lhe escapando
Observou seus sapatos gastos
Firmou no longo caminho que teria pela frente
Seguiu.
Parou.

Maldize todos os santos que conhecia
Xingou pai, mãe, destino e a própria sorte.

Seguiu
Sentou
Dormiu
E não foi trabalhar no dia seguinte.

Queria simplesmente existir
Ainda que a esperança fosse um pão amanhecido
A pobreza nunca, nunca!
Nunca seria capaz de lhe tirar o coração.

(Jenyffer Nascimento)

sábado, 10 de janeiro de 2015

Cabeça-caos

É na volta pra casa
Que as certezas se distraem
E as dúvidas passeiam livremente
Sem permissão prévia.

Ser ou não ser, é inquietação pequena
Diante de tantas outras questões.

O problema é que a gente
Sabe o que fazer
Sabe como agir
Mas na hora
(puta merda!)
Na hora a gente bambeia,
Engasga, trava, oscila.
Va-ci-la.

Retorno à estaca zero.

Teu submundo implícito na lua
Que te rastreia e do alto te vigia
Dela você não se esquiva,
Nem na ida, nem na volta.

Na cabeça uma loucura muda
De vozes que ecoam em silêncio.
É agudo, é crônico: É momento.

Na volta pra casa
Caminho é identidade.
Reconhecer onde os pés pisam,
O olhar marcado de forma precisa.

Passo a passo
Pessoa a pessoa.

Nos dias em que transbordo,
Nem toque de recolher
Me põe pra dentro.

Cabeça-caos

(Jenyffer Nascimento, do livro Terra Fértil)

domingo, 19 de outubro de 2014

Que seja agora

Se entrega e vai.
Vai cambaleando mas saia do lugar.
Não importa se o passo é torto,
Se o sapato está gasto
Se o salário é pouco.
Se entrega e vai.

Vai, abraça a causa que te cabe
Abraça o coração que te ama
Abraça o vento
Procure seu centro.
Anda, desanda, re-anda,
Mas vai!

Olhe para o céu
Brinque com as nuvens
Dance sozinha
Ou sozinho na rua
Não importa o que
O onde
O como
Só o quando.
Que seja agora!

Se entrega e vai!

(Daniela Meira - Primaveira de 2014)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Canção deste natal

Procurou na terra
procurou no ar
procurou na guerra
e não soube achar.
Procurou no rio
procurou no mar
no telégrafo sem fio
e outra vez no ar.
Muito velho e sábio
foi que se lembrou
dentro dele mesmo
nunca procurou. 

(Carlos Pena Filho)

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Rotatória

As placas indicavam o contrário.
A menina dobrou o mapa,
guardou a bússola,
dispensou a lógica,
a máxima, o sextante,
quebrou o molde,
rasgou o formulário,
seguiu adiante.
Preferiu se aventurar no imaginário.

(Flora Figueiredo)

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O constante diálogo

Há tantos diálogos

Diálogo com o ser amado
                   o semelhante
                   o diferente
                   o indiferente
                   o oposto
                   o adversário
                   o surdo-mudo
                   o possesso
                   o irracional
                   o vegetal
                   o mineral
                   o inominado

Diálogo consigo mesmo
            com a noite
            os astros
            os mortos
            as ideias
            o sonho
            o passado
            o mais que futuro

Escolhe teu diálogo
                           e
tua melhor palavra
                           ou
teu melhor silêncio
Mesmo no silêncio e com o silêncio
dialogamos.

(Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Fêmea-Fênix

Navego-me eu–mulher e não temo,
sei da falsa maciez das águas
e quando o receio
me busca, não temo o medo,
sei que posso me deslizar
nas pedras e me sair ilesa,
com o corpo marcado pelo olor
da lama.

Abraso-me eu-mulher e não temo,
sei do inebriante calor da queima
e quando o temor
me visita, não temo o receio,
sei que posso me lançar ao fogo
e da fogueira me sair inunda,
com o corpo ameigado pelo odor
da chama.

Deserto-me eu-mulher e não temo,
sei do cativante vazio da miragem,
e quando o pavor
em mim aloja, não temo o medo,
sei que posso me fundir ao só,
e em solo ressurgir inteira
com o corpo banhado pelo suor
da faina.

Vivifico-me eu-mulher e teimo,
na vital carícia de meu cio,
na cálida coragem de meu corpo,
no infindo laço da vida,
que jaz em mim
e renasce flor fecunda.
Vivifico-me eu-mulher.

(Conceição Evaristo)