terça-feira, 27 de outubro de 2009

Fresta

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.
(Fernando Pessoa)

domingo, 25 de outubro de 2009

Não: Devagar

Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.
Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?
(Álvaro de Campos)

sábado, 24 de outubro de 2009

Anda! Caminha! Aonde?... Mas por onde?...

Se a um gesto dos teus a sombra esconde

O caminho de estrelas que tracei...
(Florbela Espanca)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"Tem dias..."

Tem dias em que me perco em meus enigmas.
Quando consigo contrafazer imensa lacuna
Aturdida vou rabiscando versos sem rimas
Sentimentos peregrinam em densa bruma

Para o oculto do que sinto, sou rota medida.
Sou esfinge nebulosa, sem definição precisa.
Nem as estrelas conseguem indicar a saída
Desse labirinto de interrogações concisas

As certezas pousam ao relento na madrugada
Na oponente palidez dos meus subterfúgios
Exausta de me esquivar nos atalhos da estrada
Esquadrinho atalhos nos atemporais refúgios

À procura de mim saio num nômade mergulho
Não me vejo, mas em sedenta busca, me procuro.
(Glória Salles)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Sonhos

Sonhei que era a tua amante querida,
A tua amante feliz e invejada;
Sonhei que tinha uma casita branca
À beira dum regato edificada…

Tu vinha ver-me, misteriosamente,
A horas mortas quando a terra é monge
Bater o coração quando de longe

Te ouvia os passos. E anelante
Estava nos teus braços num instante,
Fitando com amor os olhos teus!

E, vê tu, meu encanto, a doce mágoa:
Acordei com os olhos rasos d´água,
Ouvindo a tua voz num longo adeus!!!
(Florbela Espanca)

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Certo querer

Uma longa espera...
Pelo que nunca veio e talvez jamais venha.
Um querer provar outro gosto, outro bocado.
Perco-me nas voltas que traço
E meus territórios abertos
Mostram-me o horizonte longe demais
Inalcançável aos meus olhos...
É querer esse "nada" cheio de mistérios
Outras palavras, antes jamais ditas
Rios querem fluir, ir ao encontro
Do mar desconhecido, assustador
Ao mesmo tempo o medo
De ficar a deriva, num mar bravio...
É me olhar do alto de mim
Nada entender, ainda assim me permitir
É querer ser o que digo
E o que penso, sem negar, nem me esconder.
É querer o plano "B", antes até
Da estratégia montada
A ânsia por descobrir, conhecer, ouvir
É contornar minhas margens
Preencher meus espaços...

E aprender a nesses vácuos...
Não tecer fios de solidão
Confuso esse querer ir embora
De mim mesma...
(Glória Salles)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Nem o sol, nem a lua, nem eu...

Hoje eu encontrei a Lua
Antes dela me encontrar
Me lancei pelas estrelas
E brilhei no seu lugar
Derramei minha saudade
E a cidade se acendeu
Por descuido ou por maldade
Você não apareceu

Hoje eu acordei o dia
Antes dele te acordar
Fui a luz da estrela-guia
Pra poder te iluminar
Derramei minha saudade
E a cidade escureceu
Desabei na tempestade
Por um beijo seu

Nem a Lua, nem o Sol, nem Eu
Quem podia imaginar
Que o amor fosse um delirio seu
E o meu fosse acreditar

Hoje o Sol não quis o dia
Nem a noite o luar.
(Lenine)